Noite de vento muito forte, Clayto saiu da escola de dança, mas retornou uma hora depois – momento em que Tom Akashi, o dono da escola, estava tomando uns drinques no “Luna”, convidado pela mulher do vestido cor de púrpura.
Desceu a escada estreita e comprida, abriu a porta de madeira gasta, atravessou o salão semiescuro e foi entrando no escritório que ficava nos fundos. Apalpando, reconheceu onde estava o cofre e bastou lembrar o segredo para abri-lo com facilidade. Dentro, havia uma caixa que ele apanhou com uma das mãos e escondeu-a debaixo da jaqueta e, mais do que depressa, deixou aquele lugar.
Estava combinado que iria se encontrar com a mulher do vestido cor de púrpura no “Subaru”, barzinho que ficava três casas antes do “Luna”, mas ele estava ansioso para saber quanto havia na caixa. E ali mesmo, debaixo do poste de iluminação, abriu-a.
Apareceu uma coisa envolta num tecido fino. Ao desembrulhar, viu que era uma estatueta!
O susto foi tão grande que ele se amparou no poste e prendeu a respiração.
Refeito, olhou mais uma vez para a estatueta e vieram-lhe à lembrança os desenhos de santo que gostava de ver nas aulas de catecismo da igreja quando criança. “Parece com a Nossa Senhora, mas esta deve ser uma santa do Japão”.
Foi nessa hora que Clayto reconheceu que havia traído a confiança de Tom Akashi que lhe dera o emprego na escola de dança de bom grado. “Foi castigo de Deus” e, arrependido, deixou-se cair na calçada, segurando firme com as duas mãos a estatueta. Então, aconteceu algo extraordinário: quanto mais ficava vendo o olhar meigo da figura da estatueta, mais parecia estar vendo os olhos de sua avó – a “obaatchan” que havia encontrado somente uma vez, quando ele estava com 5 anos e ela havia saído de um lugar longe do interior para ir conhecê-lo. Ela havia levado uma grande bola de futebol como presente e Clayto prometera que se tornaria jogador.
“Devolva! Devolva!” – parecia dizer-lhe. Ele retornou à escola de dança, desceu a escada estreita e longa e, cuidadosamente, depositou a caixa com a estatueta no último degrau e foi embora.
Sua cabeça ainda estava confusa, mas ele tomou a firme decisão do rumo a seguir. Iria para a cidade onde morava um velho conhecido com quem trabalhara antes.
Desembarcou na cidade por volta das seis horas da manhã. Estava passando perto de um conjunto habitacional onde morava um grande número de brasileiros, quando avistou uma pessoa caída. Ao se aproximar, viu que era um homem de uniforme cinza, debruçado sobre uma bicicleta.
“O senhor está bem?” – perguntou e o homem foi abrindo os olhos lentamente e fazendo sinal que sim. Em seguida, tentou se levantar e Clayto dispôs-se a ajudar. Nisso, uma jovem veio correndo. “Eu não disse? Que era melhor descansar hoje” e, com a ajuda de Clayto, conseguiu erguê-lo do chão.
O homem, muito constrangido, aproximou-se de Clayto e agradeceu-lhe com um forte aperto de mão. Foi nesse momento que os olhos de Clayto se fixaram no relógio que o homem portava. Um belo relógio, mas a pulseira não era de couro, mas sim de um material plástico amarelo claro.
O pai de Clayto tinha um relógio idêntico a esse: da marca suíça Omega, cuja pulseira, de tão gasta, tinha sido substituída por uma tira de sandália de plástico, na falta de condições para trocá-la por uma de couro. Clayto era criança e acompanhara com curiosidade o trabalho manual de seu pai. Foi disso que se lembrou na mesma hora.
A jovem era filha desse senhor, pois mais de uma vez ela disse em tom de censura: “Papai não ouve a gente, é nisso que dá”.
Clayto tomou coragem e perguntou num impulso: “É o Kiyoshi Saito?”.
Os dois olharam para Clayto com espanto. A jovem largou a bicicleta na beira do caminho, pegou o pai pela mão e se aproximou.
“È o Clayto? É o Clayto, não é?”.
O senhor segurou a mão de Clayto e começou a chorar em voz alta. A jovem conteve as lágrimas e disse: “Eu sou a Keila. A Kátia e eu sempre estivemos preocupadas pensando em você...”.
Os três conversaram sem parar, sentados no banco do jardim, com o sol da manhã batendo nas costas.
Fazia 15 anos que eles não se viam. Quando Clayto estava com 8 anos, seus pais se separaram. Sua mãe pegou as duas filhas menores e foi embora para a sua terra, Pernambuco. Seu pai caiu doente, foi hospitalizado, teve alta e em seguida sumiu. Depois, Clayto foi morar na casa do tio, mas um dia acabou sendo expulso de lá. Pai aos 18 anos, foi ao Japão para trabalhar como decasségui. Muitas coisas aconteceram, mas finalmente tinha conseguido reencontrar sua família.
Custou, mas Clayto estava enxergando uma luz no fim do túnel.